quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Há o amante, a amada e, entre eles, o amor

Há o amante, a amada e, entre eles, o amor

Há o amante, a amada e, entre eles, o amorA sexualidade pode nos abrir a uma outra dimensão, porque, durante alguns instantes, nós nos esquecemos de nós mesmos e nos entregamos. E nesta experiência de doação, nesta experiência de abertura, há a Presença que vem nos encontrar. Há esta presença que Graf Dürckheim chama “O Grande Terceiro”. Nesta ocasião compreendemos que o amor não depende de mim ou de você mas de um terceiro entre nós.
Há o amante, a amada e, entre eles, o amor. Este amor tem uma vida própria.
Algumas vezes duas pessoas olham demais uma para a outra e não olham juntas na mesma direção. Não olham juntas para este terceiro que as une. Que, ao mesmo tempo, as une e as diferencia para que não haja mistura, para que não haja redução de um ou de outro.
Se as pessoas olham este terceiro então a relação poderá ser duradoura. Neste caso, fez-se a experiência de algo que não pertence ao tempo.
Vocês talvez notaram, entre alguns de seus verdadeiros amigos, que vocês podem se separar por muitos anos, deixarem de se ver por muito tempo e, após 10 ou 20 anos, quando vocês se encontram é como se continuassem a conversação da véspera. Como se houvesse entre vocês alguma coisa que não foi utilizada nem destruída pelo tempo.
Esta experiência de amizade ou de amor é uma experiência da eternidade no tempo. E, novamente, temos uma abertura do nosso ser finito ao infinito.
O encontro pode também ser vivido de um espírito a outro espírito . A pessoa que nos fala diz exatamente a palavra que nós pensamos e não sabemos se é ela que fala ou se somos nós que falamos. Neste caso há um momento de unidade, um momento em que partilhamos a mesma consciência, um momento em que não estamos mais enclausurados no nosso pequeno vaso. Sentimos que o nosso pensamento é compartilhado com o outro pensamento. Isto pode ser vivido ao nível do coração. A impressão de que conhecemos alguém desde sempre.
Não é necessário apelar para uma vida anterior. Talvez seja mais necessário apelarmos para nossa vida interior. Quer dizer que nós nos encontramos ao nível da profundidade que não está atrás de nós, que não está no passado mas que está no próprio momento em que vivemos. E aí, novamente, há uma abertura de coração.
Vocês sabem, porém, que o encontro de dois seres humanos nem sempre é maravilhoso e transfigurador. Pode ser destruidor. Através da paixão, do ciúme, podemos nos destruir. Mas com o recuo posso ver que graças a este conflito, graças a esta separação, a este rompimento, posso descobrir a mim mesmo. Porque o que se decepciona em mim é a minha expectativa. Eu fico decepcionado na medida das minhas expectativas.
Não se trata de acusar o outro, de não recebê-lo. Trata-se de reconhecer a projeção que estamos fazendo no outro. E neste momento ocorre como que uma retirada da projeção. Pode ser um momento de decepção, mas pode ser também um momento de iluminação. Neste sentido, um pensador francês nos fala da “decepção iluminadora”. Ele dizia: “Eu tenho ainda muitos amigos a decepcionar”.
Efetivamente, não paramos de projetar uns nos outros, nossa imagem do homem, nossa imagem da mulher. E há momentos em que não há mais imagens. E nesta transparência há um verdadeiro encontro. Um verdadeiro encontro com sabor de transcendência.
Leonardo Boff nos fala do encontro de Francisco de Assis com os pobres e com o leproso. Estes encontros podem se dar, entretanto, com pessoas bem comuns. Mas há um momento onde nossos olhos se abrem. Na liturgia bizantina, quando se fala da transfiguração de Cristo, diz-se que os discípulos tornaram-se capazes de vê-lo como ele era. Não era o Cristo que tinha mudado. Era o olhar dos discípulos.
A experiência da transfiguração não é somente uma mudança do mundo exterior mas é uma mudança de olhar sobre o mundo exterior. Mudar de mundo começa por mudar de olhar.

Jean-Yves Leloup